terça-feira, 29 de outubro de 2013

A origem mundo dos Black Blocs


Abaixo, uma esclarecedora entrevista que Francis Dupuis-Déri, da Universidade de Québec em Montreal concedeu ao jornalista Tadeu Breda, da Rede Brasil Atual. O entrevistado é autor do livro Les Black Blocs e Who´s Afraid of the Blac Blocs? Anarchy in Action Around the Workd.
  
O que é o black bloc? Um movimento? Uma tática? Uma performance?
 Black bloc é simplesmente uma tática, uma maneira de se organizar dentro de uma manifestação. Consiste em se vestir de preto para garantir um certo anonimato. Pelo que conheço, a maioria dos black blocs desfilam com calma nas manifestações. A simples presença deles forma, de certa maneira, uma bandeira preta, símbolo do anarquismo. Vale lembrar que os sindicatos fazem coisa semelhante quando se manifestam: eles se agrupam atrás de faixas, com bandeiras, para que todos os seus membros andem juntos. Nesse sentido, com o black bloc é a mesma coisa.
 Quando, como, onde e por que surgiram os black blocs?
 O black bloc como forma de ação – ou seja estar vestido de preto e mascarado – surgiu na Alemanha Ocidental por volta de 1980. A tática apareceu dentro do movimento “Autonomen”, que organizava centenas de ocupações políticas e lutava contra a energia nuclear, a guerra e os neonazistas. Os black blocs alemães defendiam as ocupações de prédios contra as expulsões da polícia e se confrontavam com os neonazistas nas ruas. A estratégia black bloc se propagou no Ocidente através da música anarcopunk e de grupos antirracismo. A ampla cobertura midiática das manifestações antiglobalização de Seattle, nos Estados Unidos, em 1999, também contribuiu para a difusão da tática, assim como a internet o faz hoje. A questão, aqui, é que o black bloc é facilmente reproduzível.
 O que justifica o surgimento dos black blocs em países da Europa e nos Estados Unidos, onde as necessidades básicas da maioria dos cidadãos, ao contrário do que ocorre no Brasil, já estão atendidas?
 No Ocidente, os black blocs se mobilizam há pelo menos 15 anos durante grandes encontros do G8, G20, FMI etc. E dentro do chamado movimento altermundialista (famoso pelo slogan “outro mundo é possível”, cunhado pelo Fórum Social Mundial). Muitos black blocs consideram que a ideologia neoliberal e o capitalismo são responsáveis pelas desigualdades, injustiças e a destruição do planeta. Além disso, essas grandes cúpulas internacionais demonstram que apenas uma ínfima parcela da elite controla os negócios globais e que, consequentemente, existe um sério déficit democrático no mundo. Por fim, a repressão aos movimentos sociais no Ocidente cresceu nos últimos 15 anos. Em países como a Grécia, a situação econômica é catastrófica. Por essas e outras razões, as pessoas estão revoltadas e consideram que já não basta se manifestar pacificamente: é preciso perturbar e reagir quando a polícia ataca o povo.
 Que ideologia norteia a atuação dos black blocs?
 Não existe “um” black bloc, mas sim “os” black blocs, que são distintos em cada manifestação. De maneira geral, quem mais participa desses grupos são anarquistas, anticapitalistas, feministas radicais e ecologistas. Segundo minhas pesquisas, os black blocs são geralmente compostos por indivíduos com uma forte consciência política.
 Os black blocs são de esquerda ou de direita? É possível defini-los nestes termos?
 Principalmente de esquerda e sobretudo de extrema-esquerda. Mas, como o black bloc é reconhecido principalmente pela aparência, pela roupa preta, fica fácil imitá-lo. Já há alguns anos, na Alemanha, país onde surgiu a tática, neonazistas organizam black blocs dentro de suas próprias manifestações. É uma apropriação, uma deturpação.
 É possível fazer algum paralelo entre os black blocs e o ludismo do século 19?
 De certa maneira, podemos sim fazer um paralelo. Muitos pensam que os ludistas, que destruíam as maquinas têxteis na Inglaterra no século 19, eram apenas românticos contrários ao progresso. Mas, no fundo, eles defendiam um modo de vida comunitário contra o desenvolvimento tecnológico e econômico que mais tarde viria a perturbar profundamente suas vidas. Tudo em nome do lucro de alguns poucos privilegiados. Certamente, essa ideia existe dentro dos black blocs. Há muitos ecologistas radicais que aderem à tática, e suas ações diretas são motivadas pela convicção de que o capitalismo, o desenvolvimento desmesurado e o consumismo vão destruir a vida no planeta.
 Por que os black blocs adotaram o vandalismo como estratégia?
 Muitos movimentos sociais contam com grupos mais combativos. Isso se aplica, por exemplo, para os movimentos indígenas e alguns grupos sindicais. É importante lembrar que os black blocs não são os únicos que procuram destruir bancos. Durante a crise de 2001, na Argentina, lembro de ter visto mulheres da classe média, de aproximadamente 50 anos, atacarem vitrines de bancos com martelos, porque elas acabavam de perder todas suas economias. Era uma maneira significativa de expressar sua revolta. Ao longo dos séculos, muitas vezes, pessoas arruinadas por dívidas pesadas queimaram bancos e tribunais – onde se mantinha o registro das dívidas. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos depois da independência. Como outras pessoas, os black blocs pensam que é preciso mais que manifestações calmas e pacíficas para realmente perturbar a ordem das coisas e expressar uma revolta legítima contra instituições que destroem suas vidas. Os bancos são uma delas.
 Em que sentido atentar contra símbolos do capitalismo (bancos, lojas de automóveis etc.) pode ajudar a superar a ordem capitalista?
 Algumas pessoas se manifestam com um cartaz “Foda-se Capitalismo!”. Isso não detém o capitalismo, mas é uma mensagem, uma crítica pública. A ação do black bloc é a mesma coisa, só que mais radical, mais combativa. O alvo é a mensagem. Os críticos dos black blocs frequentemente relatam danos e quebradeiras contra pequenos comércios e usam esse fato para qualificar a tática como violência gratuita e apolítica. Ora, segundo minhas pesquisas, 99% dos alvos têm um significado claramente político: bancos, grandes empresas, grupos privados de mídia, edifícios do governo e da polícia. Mesmo quando um pequeno comercio é alvo, é preciso ser paciente e buscar alguma explicação. Frequentemente, nas semanas seguintes, ficamos sabendo que, por exemplo, era uma represália contra comerciantes que colaboraram com a polícia durante uma manifestação, ou pequenos empresários que costumam a maltratar seus funcionários.
 No Brasil, os black blocs apareceram com mais força durante as manifestações de junho. Tanto à esquerda quanto à direita, poucas são as vozes que contestam publicamente essa desumanização dos black blocs. Esse processo de condenação social também foi visto em outros países onde os black blocs atuam há mais tempo? Pode citar alguns exemplos?
 No Ocidente, a repressão da polícia contra movimentos sociais progressistas vem crescendo nos últimos 15 anos. Durante a greve estudantil de 2012, no Canadá, mais de 3.500 pessoas foram presas apenas na cidade de Québec. (Québec tem apenas 7 milhões de habitantes e a greve durou 10 meses) A maioria das prisões ocorreu durante manifestações pacíficas. Ao todo, ao longo de toda a greve, apenas algumas vitrines foram quebradas. Nada que justifique tamanha repressão.
Na cidade de Montreal e na cidade de Québec, a legislação municipal também foi modificada para proibir máscaras e obrigar os manifestantes a fornecer antecipadamente o trajeto do protesto. Um militante fantasiado de panda foi preso e teve a cabeça de sua fantasia arrancada. Em um dos meus livros, À qui la rue? Répression policière et mouvements sociaux (A quem pertence a rua? Repressão policial e movimentos sociais, em tradução livre), contabilizei mais de 10 mil detenções contra o movimento altermundialista desde asmanifestações de Seattle, nos Estados Unidos, em 1999. As leis antiterroristas editadas após 11 de setembro de 2001 são usadas para criminalizar todo tipo de dissidência. Os conflitos políticos se polarizam e o Estado age de maneira burra, através da repressão policial e da detenção dos dissidentes.
 Como a esquerda (movimentos sociais, partidos políticos e intelectuais) costuma reagir à aparição dos black blocs?
 Os black blocs parecem não ter muitos amigos. Muitas vezes, os porta-vozes das organizações progressistas, como sindicatos, denunciam os black blocs, dizendo que eles se “infiltram” em “suas” manifestações e que eles só querem “quebrar tudo”. Pessoas de esquerda justificam dessa maneira a repressão e a criminalização da dissidência. Denunciando a “violência”, eles esperem ganhar uma imagem respeitável. Vimos isso em todas as manifestações do movimento altermundialista, desde Seattle, em 1999, até o encontro do G20 em Toronto, no Canadá, em 2010. O problema é que essas forças progressistas praticamente não acumulam ganhos nos últimos 15 anos. Pior, é a direita quem está na ofensiva em todas as partes, e a esquerda recua – pelo menos na Europa e nos Estados Unidos.
 A esquerda mais institucional e “respeitável” frequentemente precisa da turbulência e da combatividade da extrema-esquerda para suas manobras no campo político. Na Itália, um grupo contra a construção de um trem de alta velocidade (Movimento No TAV) aplaudiu em Turim um porta-voz que declarou “somos todos black blocs”. No Brasil, o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) declarou recentemente apoio e solidariedade aos black blocs. Vemos regularmente testemunhos de manifestantes que não participam dos black blocs, mas que concordam com a tática e inclusive já foram protegidos por eles dos ataques da polícia. Vimos isso em Seattle e no Québec durante a greve de 2012, assim como em outros lugares. Muitos sabem também que os black blocs ilustram um elemento importante dos movimentos de contestação. Para alguns, os black blocs são uma “imagem do futuro”.
 Tradução: Delphine Lacroix


terça-feira, 10 de setembro de 2013

A pluralidade humana e o professor na sala de aula


Quando um professor entra numa sala de aula geralmente ele parte da ideia de que ela é composta por um grupo homogêneo de pessoas. O mesmo faz os alunos em relação aos seus professores: haveria uma identidade entre eles. Essa uniformização das mais diversas identidades e jeitos de ser tem causado, a meu ver, situações conflitantes e desagradáveis na escola.
Se isso não bastasse, o aluno e o professor vão para escola com uma concepção e uma postura que também provoca algumas desconfianças, mas que, no entanto, passam despercebidas: que somos seres racionais. E isso é tudo. Queremos pensar em outra direção: aluno e professor não estão ali, na sala de aula, apenas para obter, construir, elaborar e buscar o conhecimento. Eles querem e desejam mais do que isso. Quando igualamos o não-igual corremos o risco de cometer atrocidades. Aquele desejo de universalidade e de homogeneidade, que está base de nossas práticas pedagógicas, pode encontrar aqui os seus limites. Enfim, não somos apenas um ser que pensa, em que o intelecto torna-se a única instância para se edificar um projeto e uma práxis educativa.
Seres plurais, inacabados e finitos que somos, vivemos e convivemos na companhia dos outros, que são diferentes para mim tal como eu sou diferente para eles. Na sala de aula, a busca da verdade deve combinar-se também com a busca da felicidade, da justiça e do belo. Do ponto de vista das relações que se estabelcem na escola, é preciso levar em conta a pluralidade e a singularidade que habita aquele espaço. Somos seres livres e abertos a experiências existenciais, seja individuais ou coletivas, irredutíveis a um único aspecto. Por isso sugiro aos professores que para o bem de sua mente e de seu corpo, não se angustiem e nem se estressem, mas aprenda a lidar com o imprevisível, incluindo o mundo sensível e passional em suas práxis pedagógica de forma a contribuir para um processo educativo mais amplo e integral.
Na sala de aula se manifesta as mais diversas perspectivas e expectativas que alunos e professores são portadores; é um dos lugares onde a pluralidade humana se exprime. Alunos e professores não são apenas sujeitos dotados da capacidade de conhecer, mas são pessoas que agem e sofrem os efeitos da sua ação na sua relação com os outros, constituindo, assim, as suas existências. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana. Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. Qualquer ação pedagógica deve levar isso em consideração, caso não queira viver a experiência da frustração, como às vezes ocorre.

Romper com a uniformização e com a visão universalizante da vida exige uma abertura ao outro em sua singularidade e não há espaço mais apropriado para isso do que a sala de aula. Com isso queremos dizer que não há o ser humano, mas seres humanos, ou nas palavras de Aristóteles, o humano se manifesta de vários modos, o que exige do professor redescrever a sua postura ao entrar em contato com seus alunos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre o tempo e a velhice, de Antônio Ozaí da Silva


“Matamos o tempo; o tempo nos enterra”.
Machado de Assis
Estes dias assisti ao filme Sombras de Goya[1] e lembrei-me de um texto que li, por coincidência, há cerca de um ano. Trata-se de “O sono da razão produz monstros”, escrito por Jorge Coli.[2] Neste, o autor refere-se a temas que me fazem pensar muito: o tempo e a velhice. Talvez porque o meu vizinho tenha completado 80 anos – e em plena forma; ou porque medito sobre o meu avô com os seus 107 – embora numa situação praticamente vegetativa; talvez porque nesse período fico assim… pensativo!; quem sabe seja a proximidade do meu cinqüentenário.
Seja como for, na obra do pintor Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) há um quadro que representa mulheres idosas diante do espelho. É uma das faces da velhice que, muitas vezes, não gostamos de ver, mas que mostra como o tempo deixa suas marcas. Como nota Coli, “toda beleza fenece, o vigor da juventude é transitório, loucos aqueles, como a velha no espelho, que desconhecem o caráter transitório de si mesmo”.[3]

Às vezes, a vaidade nos cega diante dessa realidade irrefutável: o tempo passa, ou, como dizia o poeta, “O tempo não pára”. Dialeticamente, como diriam meus amigos marxistas, a vida traz em si a própria destruição; começamos a morrer assim que nascemos e quanto mais nos apegamos à vida, mas ela foge de nós. Eis uma contradição insuperável. Daí o apego humano aos delírios da imortalidade e a crença em promessas como a ressurreição, vida após a morte, etc.
Talvez o tempo seja como Saturno, o deus da mitologia romana representado por Goya, sobre o qual observou Coli: “A imagem do tempo capaz de revelar a verdade torna-se para ele [Goya] a entidade obsessiva e impiedosa que reduz o homem ao efêmero de si mesmo. Passa-se da experiência física a uma consciência propriamente ontológica do estar no mundo: numa das decorações para a sua Quinta, o velho tempo transforma-se num Saturno, num deus Cronos monstruoso, que devora seus próprios filhos. O tempo é aquele que engendra, o pai absoluto que traz à existência para depois destruir sua prole”. [4]

Outro dia vi um cachorro morto na rua e, instintivamente, virei o rosto. Não queria olhá-lo. A cena me perturbava. A imagem não saía da mente. Por que? Se pensarmos bem, do ponto de vista da matéria, isto é, da certeza de que fenecemos como qualquer outro corpo vivo, o que nos diferencia de um cão ou outro animal? O fato de termos consciência? A nossa alma? A crença em algo transcendental e noutra esfera para onde irá a nossa alma? É preciso, porém, acreditar!
Permanece o dilema humano e a dificuldade em aceitar que não é eterno, que a vida é finita. O ser humano é o único animal que tem consciência da morte e, portanto, é admirável a sua arrogância perante o inexorável. Alguns até se recusam a falar e pensar sobre isso; outros agem como se a juventude não sucumbisse ao tempo. Esquecem, no entanto, que morremos a cada segundo que vivemos.
A depender das circunstâncias, talvez seja melhor não chegar à velhice, não se ver no espelho nem vegetar. Vale a pena continuar vivendo quando perdemos o domínio mais elementar sobre o nosso corpo? Não podemos fugir à morte, mas é possível transformar o tempo em nosso amigo? Não advogo o suicídio nem recrimino a velhice. Esta tem algo de belo e positivo. Há outros quadros que podem ser pintados além das representações do grande pintor espanhol. Em qualquer caso, o tempo deixa marcas indeléveis em nosso rosto, em nosso corpo. Ele não nos perdoará e cumpriremos o ciclo da vida. Melhor nos resignarmos a esta verdade absoluta.
Gostaria de chegar aos 80 anos e curtir a idade com a energia e o orgulho do seu Joaquim; mas não desejo chegar aos 107 se isto significar viver como o seu João, meu avô.
__________
[1] Sombras de Goya, Espanha, 2006. Direção: Milos Forman.[2] In: NOVAES, Adauto (Org.) A Crise da Razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília, DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 301-312.[3] Id, p. 307.[4] Idem.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

REFLEXÕES SOBRE ÉTICA E EDUCAÇÃO



A ética tornou-se  na atualidade um assunto de profundos debates, repercutindo em amplas esferas da sociedade. Observamos que no campo da educação, em particular,  o tema dos valores tem ocupado uma grande parte das discussões e das propostas, trazendo-nos algumas questões que pretendem compreender os anseios e as expectativas que parcela significativa dos personagens – alunos e professores - querem ver realizadas ou respondidas na sala de aula.
Haveria um desejo no mundo contemporâneo em fazer brotar elementos propícios e respostas que possam colaborar nas decisões e no sentido que atribuímos às nossas formas de comportamento e de vida, enfim, à nossa própria existência. Por isso, muito se tem falado, escrito e debatido sobre ética e sua articulação com a educação.
Os desafios colocados hoje à humanidade demandam de cada um nós uma postura firme e comprometida, de tal maneira que se busque efetivamente responder às tensões e às crises herdadas do século passado. Porém, num outro aspecto dessa mesma crise, quanto mais conhecemos, quanto mais ampliamos e conquistamos novos saberes e construímos novos valores, adotando novas formas de conduta e de pensar, mais nos sentimos incomodados e insatisfeitos. A sensação é de desconforto e insegurança – e até de ignorância. Ninguém tem mais certeza e segurança sobre quais valores devem ser garantidos.
Se considerarmos a ética como uma possibilidade de aprofundar e compreender as inquietações que habitam o nosso tempo, a educação pode ser tomada como um campo privilegiado e fértil para reflexões dessa natureza. Como refletir a respeito de ética e moral, cidadania, direito e amizade a partir de um diagnóstico que indica a impossibilidade de justificarmos universalmente os valores que tomamos como parâmetros para nossas condutas? Se um dos objetivos da educação é garantir a formação ético-moral, que significado ainda poder ter o direito, a amizade, a justiça e a cidadania, num mundo cujo próprio ideal de humanidade é colocado em questão?
As ideias do filósofo alemão Immanuel Kant é bastante significativa sobre essas questões. Defendendo a ideia de que a perfeição da natureza humana é a finalidade que cada geração deve deixar como herança para as gerações futuras, considera que a educação deve ser de tal maneira que possa proporcionar o aperfeiçoamento da humanidade. Segundo ele, é entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação, abrindo a possibilidade para uma futura felicidade da espécie humana, tendo em consideração que  a natureza dispôs nos homens sementes de humanidade e nestas estão contidas o destino do homem. Cabe à educação cultivar essas sementes para que se desenvolvam bem e dê bons frutos.
Assim, o melhoramento da espécie humana, o seu aperfeiçoamento, pela educação, em direção ao bem, depende, para se desenvolver, do próprio homem. Como diz Kant, as disposições para o bem não estão prontas, não se desenvolvem por si mesmas - a felicidade ou a infelicidade humana dependem do próprio homem, cabe a ele desenvolvê-la. A educação, portanto, é o maior e o mais árduo problema que pode ser proposto aos homens.
Essa responsabilidade da educação, atribuída ao homem, decorre das conseqüências maléficas ou benéficas que podem provocar na vida das gerações futuras. Esta dimensão ética do processo educativo significa que os conhecimentos produzidos pela espécie humana devem ter como finalidade não apenas garantir como também desenvolver as disposições naturais do homem para a razão e para a liberdade.
         Enfim, a educação deve ter como princípio superar o estado presente. De nada valeria educar permanecendo nos limites das condutas do homem atual.  É preciso vislumbrar um estado melhor de vida para a humanidade, no futuro. Se o mundo é corrupto ou mentiroso, necessita-se de uma prática educativa que ultrapasse esse estado de coisas.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Clássicos literários levam à reflexão e ao aprimoramento pessoal

Quem nunca se pegou pensando sobre a vida, seus relacionamentos ou o mundo ao redor depois de terminar um bom livro? Além de ser um prazer, a literatura também traz subsídios para profundas reflexões. Em tempos modernos, os livros de autoajuda surgiram para orientar as pessoas objetivamente a lidar com os próprios problemas. No entanto, a leitura de clássicos literários pode levar a uma experiência muito mais produtiva de desenvolvimento pessoal. 
"Os livros de autoajuda são criticados porque se fecham em um único sentido. Já a literatura abre para a interpretação de cada um. Cada leitor vai tirar as suas próprias conclusões acerca de uma obra, de acordo com as experiências pessoais e o repertório cultural", defende Filomena Elaine Paiva Assolini, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, em Ribeirão Preto.
 
Na literatura clássica, em muitos casos, a mensagem não chega ao leitor de maneira tão explícita e requer certo esforço de interpretação. "Nestas obras, a mensagem pode ser dada pelo avesso, ou seja, mostram o que não se deve fazer a partir do desenvolvimento de um personagem que agiu de determinada maneira e se deu mal", explica Roberto Juliano, professor de literatura do Cursinho da Poli. "É justamente por conta dessas características, dessa complexidade, que os clássicos nos instigam a pensar", completa. 
 
Com a ajuda de especialistas em literatura, montamos a lista de livros clássicos que ilustram essa matéria e valem a pena pela narrativa, mas também pela reflexão que propõem.

terça-feira, 11 de junho de 2013

O colapso de uma moral

Prof. Alonso Bezerra de Carvalho*

Desde há algum tempo temos constatado, via reflexões, discussões e atitudes, que estamos com muitas dificuldades em encontrar princípios que durem. Valores universais que moviam as nações, os povos e as pessoas se ausentaram da vida pública e nos resta apelar para as vontades e os desejos mais individualistas ou egoístas. Nós, os humanos, temos que enfrentar a cada dia a vida intramundana tal como ela é, pois para o além dela não se vislumbra nada de seguro e permanente.
Pode parecer novidade, mas essa constatação não é nada nova. Na história do pensamento humano vários pensadores já se debruçaram sobre a questão, tentando explicar ou compreender o que se passa. O filósofo alemão Nietzsche (1844-1900), no século XIX, dedicou grande parte de seus escritos a refletir sobre a falência dos ideais que prometiam uma vida feliz a todos os homens, tanto nessa vida como numa outra que teríamos, no futuro, depois da nossa morte.
Nietzsche vai dizer que os valores supremos de desvalorizaram. Isso não significa que o homem perde seu leme e o rumo para onde precisa ainda percorrer. Não se trata de mera negação. Antes disso, o que ocorreu foi apenas um esvaziamento de sentido, simplesmente a vida e seus significados já não dizem mais as mesmas coisas que dizem antes. Aquele otimismo exagerado nas ciências, na religião, na educação, na política, etc., parece ter desaparecido e agora nos resta enfrentar o vazio do mundo e de nós mesmos.
No campo da moral, sobretudo, é bem visível, segundo Nietzsche, a falta de sentido e a derrocada dos valores morais. Viveríamos num estado psicológico em que fica difícil acreditar que tudo tem um fim, um fundamento e uma verdade e que a vida eo mundo ainda possuem valor. Vivenciamos um processo de esgotamento generalizado de novas possibilidades com a vida, ou ainda, a falência da potencialidade humana em criar novas estimativas de valor.
Nietzsche propõe a ideia filosófica de que “Deus está morto”, querendo dizer com isso que os valores transcendentais e mais sublimes foram apagados de nosso horizonte. Apagar o horizonte é tirar a meta ou a direção do homem, ou seja, que a cultura já não tem um projeto para a formação do homem e nem rumo para onde nos movimentarmos. “Deus está morto” significa que todas as esferas da cultura – a política, a religião, a arte, a educação e a moral, por exemplo -, perderam sua base de sustentação.
A crise ética resultante desse processo é notória. Se nos resta alguma esperança disso tudo, diria que cabe a nós pelo menos reconhecer e fazer um bom diagnóstico da situação. A moral que adotamos até agora teria sido uma “moral de rebanho”, cuja característica principal é o controle quase total de nossas potencialidades com a promessa de uma vida ótima depois da morte. E com isso deixaríamos de manifestar os nossos desejos de maneira plena. A repressão, a culpa, o castigo, etc., eram os meios adotados para nos fazer acreditar nesse outro mundo.
Talvez não concordemos com o filósofo, mas que estamos diante uma boa interpretação para os nossos tempos, isso estamos! Pensemos numa outra moral!

*Alonso Bezerra de Carvalho é professor da Unesp.

E-mail: alonsoprofessor@yahoo.com.br

terça-feira, 7 de maio de 2013

Em vez de se fazer política, políticos - pelo menos, uma parcela deles - fazem apenas "negócios"


João Sayad: Taxonomia dos ratos
Face a problemas insuperáveis, a ciência classifica.
Médicos classificam tumores em benignos, malignos, perversos ou dóceis. Zoólogos falam de baratas pretas, marrons, voadoras, cascudas ou molengas; ratos de rabo longo, camundongos, ratazanas, roedores urbanos e rurais. O método se chama taxonomia.
Se é impossível resolver, extinguir ou explicar, classificamos. O taxonomista é, antes de tudo, um resignado.
Convido o leitor a iniciar uma taxonomia da corrupção.
Existe a corrupção do fiscal, do policial, do oficial de justiça, do perito avaliador, do inspetor da prefeitura, do parlamentar. Esta é a malversação do tipo público. E a corrupção do setor privado, obviamente, faz par a cada uma das classes de corrupção do setor público.
Mas gêneros, espécies e subespécies ainda não foram bem definidos.
Contribuo, então, com uma classificação que, mesmo modesta, pode aumentar a produtividade dos caçadores de ratos, fabricantes de inseticidas e ratoeiras, auditores, corregedores, promotores, funcionários do Ministério Público, jornalistas e até gente do terceiro setor que ainda se incomode com o tema.
Dividiria a corrupção do setor público em dois grandes grupos.
A grande corrupção (chamemos de corrupção "a la grande") está associada a investimentos públicos enormes. É o mundo das negociatas impressionantes, das concessões viciadas, das toneladas de cimento.
O caso famoso do prédio do Tribunal Regional do Trabalho, na Barra Funda, em São Paulo, é bom exemplo. O prédio está lá. É grande, espaçoso e funcional. Pode-se dizer até que é bonito. Custou 160 milhões de reais a mais do que deveria ter custado. Mas está lá.
O culpado pelo desvio foi morar em Miami, comprou um monte de carros esporte e voltou preso. Quem ficou aqui acabou devolvendo em prestações o superfaturamento praticado. A relação custo-benefício, no final das contas, foi positiva: houve custo excessivo, mas o prédio, repita-se, ficou pronto.
As características desse tipo de corrupção são duas: primeiro, o bem público foi produzido e entregue. Depois, o valor subtraído ficou conhecido e teve limite. Acabou a obra, acabou o roubo. E os culpados mudam de ramo e nos deixam em paz, se não forem presos.
Existe também a corrupção pequena (de custeio, diriam os economistas): contrata parentes, compra papel higiênico superfaturado, orienta a criação de empresas de fachada para prestarem serviços, cria cooperativas para pagar funcionários terceirizados, faz acordo de "kick back" com os fornecedores e, principalmente, avacalha, paralisa, lasseia e termina por matar a organização que administra.
Esse tipo de corrupto "petit cash" instala-se em organizações públicas menores, nas quais pode atender a fisiologia e necessidades de financiamento eleitoral sem ser percebido de imediato. funcionários de carreira; o segredo e a confidencialidade passam a ser as regras na organização.
E os serviços públicos que seriam oferecidos vão perdendo qualidade, tornam-se irrelevantes. Os funcionários acabam deprimidos, pois não têm o que fazer, ganham mal e sabem que o "andar de cima" ganha bem por dentro e por fora. O resultado é o apodrecimento da organização até a morte definitiva.
O custo desse tipo de corrupção parece pequeno. Mas um desvio de 1 milhão por ano por tempo indefinido tem um valor atual elevado. Se a taxa de juros de desconto for de 7,5% ao ano, 1 milhão por ano custa ao contribuinte mais de 10 milhões.
Sangra a organização anos a fio, faz favores a seus superiores e enche-se de queijo de maneira paulatina e continuada. A alta administração do órgão se afasta e se esconde dos Pior ainda, a relação custo-benefício é infinita: custa 10 milhões e não oferece nenhum benefício público. Não há adição, só subtração. É dez dividido por zero.
Não há um prédio, não há nada concreto no fim da linha, só há ruínas e desmoralização. E a sociedade fica sem o serviço público direito, enquanto centenas de funcionários passam anos em meio ao lixo.
Finalmente, esse tipo de corrupção tem um agravante.
Como é obtido em suaves prestações, não permite ao parasita fugir para outro país, ir morar na praia ou dedicar-se à criação de cavalos. O parasita permanece grudado na instituição hospedeira da qual suga o sustento por longos períodos, até que mudem os partidos no governo.
É uma corrupção mixa, que não produz fóruns, estradas ou pontes.
Proponho, a quem tiver paciência de continuar o trabalho de classificação, chamá-la de "corrupção brega". Minha vontade de prosseguir na tarefa acabou. Estou indignado.
JOÃO SAYAD, 67, doutor em economia pela Universidade Yale (EUA), é presidente da Fundação Padre Anchieta

A morte não é nada para nós


Quando o nosso corpo fica doente uma das primeiras medidas que tomamos é procurar um médico ou providenciar um remédio para que o mal seja extirpado. O prazer, a tranquilidade da alma e a ausência de perturbação são desejos que queremos ver realizados.
Essa paz espiritual e a experiência de viver sem dor e sofrimento já se encontra entre os gregos, em especial na filosofia de Epicuro(342-217 a. C.). Segundo ele, o ponto de partida de um modo de vida prazeroso está em não sentir fome, nem sede e nem frio. A felicidade de cada indivíduo encontra-se num exercício permanente em que buscamos não os prazeres momentâneos, doces e efêmeros. É por procurar unicamente esses prazeres que os homens encontram a insatisfação e a dor, porquanto esses prazeres são insaciáveis e, tendo chegado a certo grau de intensidade, tornam a trazer sofrimentos.
A felicidade suficiente, perfeita e plena e o prazer estável são escolhas que nós podemos fazer, ao invés de sermos torturados por desejos vazios: a riqueza, a luxúria, a dominação. Assim, devemos optar pelos desejos naturais e necessários, que são aqueles que levam à satisfação de nos libertarmo de uma dor e que correspondem às necessidades elementares, às exigências vitais. Diz Epicuro: “Graças sejam rendidas à bem-aventurada Natureza que fez com que as coisas necessárias sejam fáceis de alcançar e que as coisas difíceis de alcançar não sejam necessárias”.
Para aprofundar e melhor esclarecer sua posição, Epicuro formula o que ele chama de “quádruplo remédio”: 1. Os deuses não são feitos para temer; 2. A morte não é feita para amedrontrar; 3. O bem não é fácil de conquistar e 4. Nem o mal de suportar.
De fato, quem quiser viver bem não deveria se pré-ocupar com a morte. Seria perturbador a nós se ficarmos organizando a nossa vida a partir do fim dela, pois enquanto cada um de nós existir a morte não existe e quando ela existir nós já não existimos mais. Enfim, a morte não é nada para nós, ou seja, nós nos bastamos as nós mesmos e quando a morte sobrevir nós não somos mais nós mesmos.
Deste modo, sumprimindo a morte de nossas preocupações, devemos nos ocupar com a vida. A satisfação de nossos desejos vem, portanto, pela prática da disciplina que nos leva saber contentar-se com o que é fácil de alcançar, com o que satisfaz as necessidades fundamentais do ser, e renunciar ao que é supérfluo. Fórmula simples, mas que não deixa de levar a uma alteração radical da vida: contentar-se com comidas simples, roupas simples, renunciar às riquezas, às honras, enfim, viver retirado.
É verdade que essa vida filosófica parece impossível nos dias atuais, mas podemos a partir dela olhar e observar que sentido estamos dando às nossas existências hoje. Será que vale o sacríficio amendrontarmo-nos com a morte, tornando-nos escravos de desejos insaciáveis que nos leva ao sofrimento e à dor? A pensar!

terça-feira, 9 de abril de 2013

Filosofia e felicidade: O que é ser feliz segundo os grandes filósofos do passado e do presente


O que é felicidade? Provavelmente, cada pessoa que resolver responder a esta pergunta apresentará uma resposta própria, pois a felicidade, num certo sentido, é algo individual, pessoal e intransferível. Por outro lado, há uma ideia de felicidade que pertence ao senso comum e é compartilhada pela esmagadora maioria das pessoas: felicidade é ter saúde, amor, dinheiro suficiente, etc. Além disso, a ideia de felicidade não é uma coisa recente. Com certeza, ela acompanha o ser humano há muito tempo e faz parte de sua história.
Sendo assim, é possível traçar a evolução histórica dessa ideia, se nos debruçarmos sobre a disciplina que sempre se dedicou a investigar nossas ideias, de modo a defini-las e esclarecê-las: a filosofia. Na verdade, a ideia de felicidade tem grande importância para a origem da filosofia. Ela faz parte das primeiras reflexões filosóficas sobre ética, que foram elaboradas na Grécia antiga. Vamos, então, acompanhar a evolução histórica dessa ideia fazendo uma viagem pela história da filosofia.
A referência filosófica mais antiga de que se dispõe sobre o tema é um fragmento de um texto de Tales de Mileto, que viveu entre as últimas décadas do século 7 a.C. e a primeira metade do século 6 a.C. Segundo ele, é feliz “quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada”. Vale atentar para a expressão “boa sorte”, pois disso dependia a felicidade na visão dos gregos mais antigos.
Bom demônio
Em grego, felicidade se diz “eudaimonia”, palavra que é composta do prefixo “eu”, que significa “bom”, e de “daimon”, “demônio”, que, para os gregos, é uma espécie de semi-deus ou de gênio, que acompanhava os seres humanos. Ser feliz era dispor de um “bom demônio”, o que estava relacionado à sorte de cada um. Quem tivesse um “mau demônio” era fatalmente infeliz.
Não há dúvida de que, entre os séculos 10 a.C. e 5. a.C, o pensamento grego tende a considerar os maus demônios mais frequentes do que os bons e apresentar uma visão pessimista da existência humana. Não é por acaso que os gregos inventaram a tragédia. Uma expressão radical desse pessimismo nos é fornecido por um velho provérbio grego, segundo o qual “a melhor de todas as coisas é não nascer”.
Foi a filosofia que rompeu com essa visão pessimista e procurou estabelecer orientações para que o homem procurasse a felicidade. Demócrito de Abdera (aprox. 460 a.C./370 a.C.) julgava que a felicidade era “a medida do prazer e a proporção da vida”. Para atingi-la, o homem precisava deixar de lado as ilusões e os desejos e alcançar a serenidade. A filosofia era o instrumento que possibilitava esse processo.
Virtude e justiça
Sócrates (469 a.C./399 a.C.) deu novo rumo à compreensão da ideia de felicidade, postulando que ela não se relacionava apenas à satisfação dos desejos e necessidades do corpo, pois, para ele, o homem não era só o corpo, mas, principalmente, a alma. Assim, a felicidade era o bem da alma que só podia ser atingido por meio de uma conduta virtuosa e justa.
Para Sócrates, sofrer uma injustiça era melhor do que praticá-la e, por isso, certo de estar sendo justo, não se intimidou nem diante da condenação à morte por um tribunal ateniense. Cercado pelos discípulos, bebeu a taça de veneno que lhe foi imposta e parecia feliz a todos os que o assistiram em seus últimos momentos.
Entre os discípulos de Sócrates, Antístenes (445 a.C./365 a.C.) acrescentou um toque pessoal à ideia de felicidade de seu mestre, considerando que o homem feliz é o homem autossuficiente. A ideia de autossuficiência (que, em grego, se diz “autarquia”,) continuará diretamente vinculada à de felicidade nos setecentos anos seguintes.
Uma função da alma
Mas o maior discípulo de Sócrates, que efetivamente levou a especulação filosófica adiante de onde a deixara seu mestre, foi Platão (348 a.C./347 a.C.), o qual considerava que todas as coisas têm sua função. Assim, como a função do olho é ver e a do ouvido, ouvir, a função da alma é ser virtuosa e justa, de modo que, exercendo a virtude e a justiça, ela obtem a felicidade.
É importante deixar claro que noções como virtude e justiça integram uma vertente do pensamento filosófico chamada Ética, que se dedica à investigação dos costumes, visando a identificar os bons e os maus. Para Platão, a ética não estava limitada aos negócios privados, devendo ser posta em prática também nos negócios públicos. Desse modo, o filósofo entendia que a função do Estado era tornar os homens bons e felizes.
A ligação entre ética e política estará ainda mais definida na obra do mais importante discípulo de Platão, Aristóteles (384 a.C./322 a.C.), o qual dedicou todo um livro à questão da felicidade: a “Ética a Nicômaco” (que é o nome de seu filho, para quem o livro foi escrito). Amigo de Platão, mas, em suas próprias palavras, “mais amigo da verdade”, Aristóteles criticou o idealismo do mestre, reconhecendo a necessidade de elementos básicos, como a boa saúde, a liberdade (em vez da escravidão) e uma boa situação socioeconômica para alguém ser feliz.
Felicidade intelectual
Por outro lado, a partir de uma série de raciocínios que têm como base o fato de o homem ser um animal racional, Aristóteles conclui que a maior virtude de nossa “alma racional” é o exercício do pensamento, pelo quê, segundo ele, a felicidade chega a se identificar com a atividade pensante do filósofo, a qual, inclusive, aproxima o ser humano da divindade.
Sem perder de vista a aplicação prática de suas ideias, Aristóteles considera a política como uma extensão da ética e, nesse sentido, para ele também é uma função do Estado criar condições para o cidadão ser feliz. O Estado que o filósofo tinha em mente, porém, era a “polis” grega, que, naquele momento, estava deixando de existir, com o surgimento do império de Alexandre o Grande.
Depois de Alexandre, no mundo grego ou helênico, desenvolveram-se três escolas filosóficas que vão se estender até o fim do Império romano, as chamadas filosofias helenísticas. Todas elas, por caminhos diferentes, chegam a conclusão de que, para ser feliz, o homem deve ser não só autossuficiente, mas desenvolver uma atitude de indiferença, de impassibilidade, em relação a tudo ao seu redor. A felicidade, para eles, era a “apatia”, palavra que, naquela época, não tinha o sentido patológico que tem hoje.
Prazer e salvação da alma
Entre os filósofos do mundo helênico, pode-se citar Epicuro (341 a.C./271 a.C.), para deixar claro que essa ideia de “apatia” não significa abdicar ao prazer. O prazer era essencial à felicidade para Epicuro, cuja filosofia também é conhecida pelo nome de hedonismo (em grego “hedone” quer dizer “prazer”). Mas ele deixa claro, numa carta a um discípulo, que não se refere ao prazer “dos dissolutos e dos crápulas” e sim ao da impassibilidade que liberta de desejos e necessidades.
Com o fim do mundo helênico e o advento da Idade Média, a felicidade desapareceu do horizonte da filosofia. Estando relacionada à vida do homem neste mundo, ela não interessou aos filósofos cristãos como Agostinho de Hipona (354 d.C./430 d.C.),Anselmo de Canterbury (1033/1109) ou Tomás de Aquino (1225/1274), todos santos da Igreja católica. Para a filosofia cristã, mais do que a felicidade, o que conta é a salvação da alma.
Os filósofos voltaram a se debruçar sobre o tema na Idade Moderna. John Locke(1632/1704) e Leibniz (1646/1716), na virada dos séculos 17 e 18, identificaram a felicidade com o prazer, um “prazer duradouro”. Alguns décadas depois, o filósofo iluminista Immanuel Kant (1724/1804), na obra “Crítica da razão prática” definiu a felicidade como “a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e vontade”.
Direito do homem
No entanto, para Kant, como a felicidade se coloca no âmbito do prazer e do desejo, ela nada tem a ver com a Ética e, portanto, não é um tema que interesse à investigação filosófica. Sua argumentação foi tão convincente que, a partir dele, a felicidade desapareceu da obra das escolas filosóficas que o sucederam.
Mesmo assim, não se pode deixar de mencionar que, no mundo de língua inglesa, na mesma época de Kant, a ideia de felicidade ganhou lugar de destaque no pensamento político e buscá-la passou a ser considerada um “direito do homem”, como está consignado na Constituição dos Estados Unidos da América, que data de 1787 e foi redigida sob a influência do Iluminismo.
Egocentrismo e infelicidade
É também no âmbito da filosofia anglo-saxônica, no século 20, que se encontra uma nova reflexão sobre nosso assunto. O inglês Bertrand Russell (1872/1970) dedicou a ele a obra “A conquista da felicidade”, usando o método da investigação lógica para concluir que é necessário alimentar uma multiplicidade de interesses e de relações com as coisas e com os outros homens para ser feliz. Para ele, em síntese, a felicidade é a eliminação do egocentrismo.
Mais recentemente, em 1989, o filósofo espanhol Julián Marías também dedicou ao tema um livro notável, “A felicidade humana”, em que estuda a história dessa ideia, da Antiguidade aos nossos dias, ressaltando que a ausência da reflexão filosófica sobre a felicidade no mundo contemporâneo talvez seja um sintoma de como esse mesmo mundo anda muito infeliz.
Bibliografia
Abbagnano, Nicola - "Dicionário de Filosofia", Martis Fontes, São Paulo, 2000.
Berti, Enrico - "No princípio era a maravilha", Loyola, São Paulo, 2010.
Marías, Julián - "A felicidade humana", Duas Cidades, São Paulo, 1989.

Antonio Carlos Olivieri Antonio Carlos Olivieri é jornalista e escritor.