João Sayad:
Taxonomia dos ratos
Face a problemas insuperáveis, a ciência classifica.
Médicos classificam tumores em benignos, malignos, perversos ou dóceis.
Zoólogos falam de baratas pretas, marrons, voadoras, cascudas ou molengas;
ratos de rabo longo, camundongos, ratazanas, roedores urbanos e rurais. O
método se chama taxonomia.
Se é impossível resolver, extinguir ou explicar, classificamos. O
taxonomista é, antes de tudo, um resignado.
Convido o leitor a iniciar uma taxonomia da corrupção.
Existe a corrupção do fiscal, do policial, do oficial de justiça, do
perito avaliador, do inspetor da prefeitura, do parlamentar. Esta é a
malversação do tipo público. E a corrupção do setor privado, obviamente, faz
par a cada uma das classes de corrupção do setor público.
Mas gêneros, espécies e subespécies ainda não foram bem definidos.
Contribuo, então, com uma classificação que, mesmo modesta, pode
aumentar a produtividade dos caçadores de ratos, fabricantes de inseticidas e
ratoeiras, auditores, corregedores, promotores, funcionários do Ministério
Público, jornalistas e até gente do terceiro setor que ainda se incomode com o
tema.
Dividiria a corrupção do setor público em dois grandes grupos.
A grande corrupção (chamemos de corrupção "a la grande") está
associada a investimentos públicos enormes. É o mundo das negociatas
impressionantes, das concessões viciadas, das toneladas de cimento.
O caso famoso do prédio do Tribunal Regional do Trabalho, na Barra
Funda, em São Paulo, é bom exemplo. O prédio está lá. É grande, espaçoso e
funcional. Pode-se dizer até que é bonito. Custou 160 milhões de reais a mais
do que deveria ter custado. Mas está lá.
O culpado pelo desvio foi morar em Miami, comprou um monte de carros
esporte e voltou preso. Quem ficou aqui acabou devolvendo em prestações o
superfaturamento praticado. A relação custo-benefício, no final das contas, foi
positiva: houve custo excessivo, mas o prédio, repita-se, ficou pronto.
As características desse tipo de corrupção são duas: primeiro, o bem
público foi produzido e entregue. Depois, o valor subtraído ficou conhecido e
teve limite. Acabou a obra, acabou o roubo. E os culpados mudam de ramo e nos
deixam em paz, se não forem presos.
Existe também a corrupção pequena (de custeio, diriam os economistas):
contrata parentes, compra papel higiênico superfaturado, orienta a criação de
empresas de fachada para prestarem serviços, cria cooperativas para pagar
funcionários terceirizados, faz acordo de "kick back" com os
fornecedores e, principalmente, avacalha, paralisa, lasseia e termina por matar
a organização que administra.
Esse tipo de corrupto "petit cash" instala-se em organizações
públicas menores, nas quais pode atender a fisiologia e necessidades de
financiamento eleitoral sem ser percebido de imediato. funcionários de carreira;
o segredo e a confidencialidade passam a ser as regras na organização.
E os serviços públicos que seriam oferecidos vão perdendo qualidade,
tornam-se irrelevantes. Os funcionários acabam deprimidos, pois não têm o que
fazer, ganham mal e sabem que o "andar de cima" ganha bem
por dentro e por fora. O resultado é o apodrecimento da organização até a morte
definitiva.
O custo desse tipo de corrupção parece pequeno. Mas um desvio de 1 milhão
por ano por tempo indefinido tem um valor atual elevado. Se a taxa de juros de
desconto for de 7,5% ao ano, 1 milhão por ano custa ao contribuinte mais de 10
milhões.
Sangra a organização anos a fio, faz favores a seus superiores e
enche-se de queijo de maneira paulatina e continuada. A alta administração do
órgão se afasta e se esconde dos Pior ainda, a relação custo-benefício é
infinita: custa 10 milhões e não oferece nenhum benefício público. Não há
adição, só subtração. É dez dividido por zero.
Não há um prédio, não há nada concreto no fim da linha, só há ruínas e
desmoralização. E a sociedade fica sem o serviço público direito, enquanto
centenas de funcionários passam anos em meio ao lixo.
Finalmente, esse tipo de corrupção tem um agravante.
Como é obtido em suaves prestações, não permite ao parasita fugir para
outro país, ir morar na praia ou dedicar-se à criação de cavalos. O parasita
permanece grudado na instituição hospedeira da qual suga o sustento por longos
períodos, até que mudem os partidos no governo.
É uma corrupção mixa, que não produz fóruns, estradas ou pontes.
Proponho, a quem tiver paciência de continuar o trabalho de
classificação, chamá-la de "corrupção brega". Minha vontade de
prosseguir na tarefa acabou. Estou indignado.
JOÃO SAYAD, 67, doutor em economia pela Universidade Yale (EUA), é presidente da
Fundação Padre Anchieta
Nenhum comentário:
Postar um comentário