Abaixo, uma esclarecedora entrevista que Francis Dupuis-Déri, da Universidade de
Québec em Montreal concedeu ao
jornalista Tadeu Breda, da Rede Brasil Atual. O entrevistado é autor do
livro Les Black
Blocs e Who´s Afraid of the Blac Blocs? Anarchy in Action
Around the Workd.
O que é o black bloc? Um
movimento? Uma tática? Uma performance?
Black bloc é simplesmente uma tática,
uma maneira de se organizar dentro de uma manifestação. Consiste em se vestir
de preto para garantir um certo anonimato. Pelo que conheço, a maioria dos
black blocs desfilam com calma nas manifestações. A simples presença deles
forma, de certa maneira, uma bandeira preta, símbolo do anarquismo. Vale
lembrar que os sindicatos fazem coisa semelhante quando se manifestam: eles se
agrupam atrás de faixas, com bandeiras, para que todos os seus membros andem
juntos. Nesse sentido, com o black bloc é a mesma coisa.
Quando, como, onde e por que surgiram os black
blocs?
O black bloc como forma de ação – ou
seja estar vestido de preto e mascarado – surgiu na Alemanha Ocidental por
volta de 1980. A tática apareceu dentro do movimento “Autonomen”, que
organizava centenas de ocupações políticas e lutava contra a energia nuclear, a
guerra e os neonazistas. Os black blocs alemães defendiam as ocupações de
prédios contra as expulsões da polícia e se confrontavam com os neonazistas nas
ruas. A estratégia black bloc se propagou no Ocidente através da música
anarcopunk e de grupos antirracismo. A ampla cobertura midiática das
manifestações antiglobalização de Seattle, nos Estados Unidos, em 1999, também
contribuiu para a difusão da tática, assim como a internet o faz hoje. A
questão, aqui, é que o black bloc é facilmente reproduzível.
O que justifica o surgimento dos black blocs em
países da Europa e nos Estados Unidos, onde as necessidades básicas
da maioria dos cidadãos, ao contrário do que ocorre no Brasil, já estão
atendidas?
No Ocidente, os black blocs se mobilizam há pelo menos 15 anos
durante grandes encontros do G8, G20, FMI etc. E dentro do chamado movimento
altermundialista (famoso pelo slogan “outro mundo é possível”, cunhado pelo
Fórum Social Mundial). Muitos black blocs consideram que a ideologia
neoliberal e o capitalismo são responsáveis pelas desigualdades, injustiças e a
destruição do planeta. Além disso, essas grandes cúpulas internacionais
demonstram que apenas uma ínfima parcela da elite controla os negócios globais
e que, consequentemente, existe um sério déficit democrático no mundo. Por fim,
a repressão aos movimentos sociais no Ocidente cresceu nos últimos 15 anos. Em
países como a Grécia, a situação econômica é catastrófica. Por essas e outras
razões, as pessoas estão revoltadas e consideram que já não basta se manifestar
pacificamente: é preciso perturbar e reagir quando a polícia ataca o povo.
Que ideologia norteia a atuação dos black blocs?
Não existe “um” black bloc, mas sim “os” black blocs, que são
distintos em cada manifestação. De maneira geral, quem mais participa desses
grupos são anarquistas, anticapitalistas, feministas radicais e ecologistas.
Segundo minhas pesquisas, os black blocs são geralmente compostos por
indivíduos com uma forte consciência política.
Os black blocs são de esquerda ou de direita? É
possível defini-los nestes termos?
Principalmente de esquerda e sobretudo de extrema-esquerda. Mas,
como o black bloc é reconhecido principalmente pela aparência, pela roupa
preta, fica fácil imitá-lo. Já há alguns anos, na Alemanha, país onde surgiu a
tática, neonazistas organizam black blocs dentro de suas próprias
manifestações. É uma apropriação, uma deturpação.
É possível fazer algum paralelo entre os black
blocs e o ludismo do século 19?
De certa maneira, podemos sim fazer um paralelo. Muitos pensam que
os ludistas, que destruíam as maquinas têxteis na Inglaterra no século 19, eram
apenas românticos contrários ao progresso. Mas, no fundo, eles defendiam um
modo de vida comunitário contra o desenvolvimento tecnológico e econômico que
mais tarde viria a perturbar profundamente suas vidas. Tudo em nome do lucro de
alguns poucos privilegiados. Certamente, essa ideia existe dentro dos black
blocs. Há muitos ecologistas radicais que aderem à tática, e suas ações diretas
são motivadas pela convicção de que o capitalismo, o desenvolvimento
desmesurado e o consumismo vão destruir a vida no planeta.
Por que os black blocs adotaram o
vandalismo como estratégia?
Muitos movimentos sociais contam com grupos mais combativos. Isso
se aplica, por exemplo, para os movimentos indígenas e alguns grupos sindicais.
É importante lembrar que os black blocs não são os únicos que procuram destruir
bancos. Durante a crise de 2001, na Argentina, lembro de ter visto mulheres da
classe média, de aproximadamente 50 anos, atacarem vitrines de bancos com
martelos, porque elas acabavam de perder todas suas economias. Era uma maneira
significativa de expressar sua revolta. Ao longo dos séculos, muitas vezes,
pessoas arruinadas por dívidas pesadas queimaram bancos e tribunais – onde se
mantinha o registro das dívidas. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos depois
da independência. Como outras pessoas, os black blocs pensam que é preciso mais
que manifestações calmas e pacíficas para realmente perturbar a ordem das
coisas e expressar uma revolta legítima contra instituições que destroem suas
vidas. Os bancos são uma delas.
Em que sentido atentar contra símbolos do
capitalismo (bancos, lojas de automóveis etc.) pode ajudar a superar a ordem
capitalista?
Algumas pessoas se manifestam com um cartaz “Foda-se
Capitalismo!”. Isso não detém o capitalismo, mas é uma mensagem, uma crítica
pública. A ação do black bloc é a mesma coisa, só que mais radical, mais
combativa. O alvo é a mensagem. Os críticos dos black blocs frequentemente
relatam danos e quebradeiras contra pequenos comércios e usam esse fato para
qualificar a tática como violência gratuita e apolítica. Ora, segundo minhas
pesquisas, 99% dos alvos têm um significado claramente político: bancos,
grandes empresas, grupos privados de mídia, edifícios do governo e da polícia.
Mesmo quando um pequeno comercio é alvo, é preciso ser paciente e buscar alguma
explicação. Frequentemente, nas semanas seguintes, ficamos sabendo que, por
exemplo, era uma represália contra comerciantes que colaboraram com a polícia
durante uma manifestação, ou pequenos empresários que costumam a maltratar seus
funcionários.
No Brasil, os black blocs apareceram com mais força
durante as manifestações de junho. Tanto à esquerda quanto à direita,
poucas são as vozes que contestam publicamente essa desumanização dos black
blocs. Esse processo de condenação social também foi visto em outros países
onde os black blocs atuam há mais tempo? Pode citar alguns exemplos?
No Ocidente, a repressão da polícia contra movimentos sociais
progressistas vem crescendo nos últimos 15 anos. Durante a greve estudantil de
2012, no Canadá, mais de 3.500 pessoas foram presas apenas na cidade de Québec.
(Québec tem apenas 7 milhões de habitantes e a greve durou 10 meses) A maioria
das prisões ocorreu durante manifestações pacíficas. Ao todo, ao longo de toda
a greve, apenas algumas vitrines foram quebradas. Nada que justifique tamanha
repressão.
Na cidade de Montreal e na cidade de Québec, a legislação municipal
também foi modificada para proibir máscaras e obrigar os manifestantes a
fornecer antecipadamente o trajeto do protesto. Um militante fantasiado de
panda foi preso e teve a cabeça de sua fantasia arrancada. Em um dos meus
livros, À qui la rue? Répression policière et mouvements sociaux (A
quem pertence a rua? Repressão policial e movimentos sociais, em tradução
livre), contabilizei mais de 10 mil detenções contra o movimento
altermundialista desde asmanifestações de Seattle, nos Estados Unidos, em 1999.
As leis antiterroristas editadas após 11 de setembro de 2001 são usadas para
criminalizar todo tipo de dissidência. Os conflitos políticos se polarizam e o
Estado age de maneira burra, através da repressão policial e da detenção dos dissidentes.
Como a esquerda (movimentos sociais, partidos
políticos e intelectuais) costuma reagir à aparição dos black blocs?
Os black blocs parecem não ter muitos amigos. Muitas vezes, os
porta-vozes das organizações progressistas, como sindicatos, denunciam os black
blocs, dizendo que eles se “infiltram” em “suas” manifestações e que eles só
querem “quebrar tudo”. Pessoas de esquerda justificam dessa maneira a repressão
e a criminalização da dissidência. Denunciando a “violência”, eles esperem
ganhar uma imagem respeitável. Vimos isso em todas as manifestações do
movimento altermundialista, desde Seattle, em 1999, até o encontro do G20 em
Toronto, no Canadá, em 2010. O problema é que essas forças progressistas
praticamente não acumulam ganhos nos últimos 15 anos. Pior, é a direita quem
está na ofensiva em todas as partes, e a esquerda recua – pelo menos na Europa
e nos Estados Unidos.
A esquerda mais institucional e “respeitável” frequentemente
precisa da turbulência e da combatividade da extrema-esquerda para suas
manobras no campo político. Na Itália, um grupo contra a construção de um trem
de alta velocidade (Movimento No TAV) aplaudiu em Turim um porta-voz que
declarou “somos todos black blocs”. No Brasil, o Sindicato Estadual dos
Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) declarou recentemente
apoio e solidariedade aos black blocs. Vemos regularmente testemunhos de
manifestantes que não participam dos black blocs, mas que concordam com a
tática e inclusive já foram protegidos por eles dos ataques da polícia. Vimos
isso em Seattle e no Québec durante a greve de 2012, assim como em outros
lugares. Muitos sabem também que os black blocs ilustram um elemento importante
dos movimentos de contestação. Para alguns, os black blocs são uma “imagem do
futuro”.
Tradução:
Delphine Lacroix
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