sábado, 21 de novembro de 2015

Desgoverno travestido de eficiência, de Vladimir Safatle



O Estado de São Paulo está acostumado a catástrofes apresentadas como questões gerenciais. Esta é uma interessante forma de governo na qual o completo desgoverno é apresentado como prova máxima da eficiência. Nada estranho para um Estado no qual a mais crassa incompetência administrativa costuma dar prêmios, haja vista a inacreditável premiação dada ao sr. Geraldo Alckmin pela sua pretensa competência da gestão da crise da água que ele mesmo criou, invenção auxiliada pelos próceres de seu partido. Uma crise que, segundo a novilíngua reinante no Tucanistão, sequer existiu, já que, por exemplo, nunca existiu racionamento, mesmo que você tenha passado dias sem água.

Dentro desse paradigma de governo, governar não é resolver problemas, mas gerenciar a língua e as informações. O número de homicídios caem porque eles não são declarados. Documentos da Sabesp, do Metrô e da PM entram em sigilo de décadas. Assim, o Tucanistão permanece feliz e Alckmin pode sonhar aplicar, em um futuro próximo, seu método de redescrição neurolinguística para todo o país.

A última pérola do desgoverno é a educação estadual. Entre 2000 e 2014, a rede estadual de ensino perdeu 1,8 milhão de alunos. O número de matrículas caiu 32,2%, produzindo, segundo dados do próprio governo, 2.900 "classes ociosas". O número de professores encolheu 11% em relação a 2014. Em um ano, o Estado ficou com 26,6 mil professores a menos. Como é de praxe, o governo apareceu afirmando que deveríamos então dar um "choque gerencial" de eficiência na rede estadual, "entregando" 94 escolas (o tucanato é inacreditável na arte do eufemismo) e criando escolas de apenas um ciclo.

Talvez seria mais honesto começar por se perguntar por que a rede estadual perdeu tantos alunos e professores. Os argumentos palacianos são fantásticos: as famílias têm menos filhos, maior municipalização do ensino. Mais honesto, no entanto, seria reconhecer que a qualidade do ensino estadual é catastrófica, seus professores são miseravelmente pagos, enfrentando condições de trabalho deterioradas, a estrutura de suas escolas é falimentar. Para se ter uma ideia, na cidade de São Paulo, a mais rica da Federação, apenas 12,4% das escolas públicas (estaduais e municipais) têm biblioteca. Isso fez com que todos os que podiam abandonar a rede estadual o fizessem o mais rápido possível.

São Paulo, mesmo sendo o Estado mais rico, nunca se destacou em estudos que medem a qualidade da educação pública. Se o Estado parasse de tratar professores de escola pública como inimigos, ele poderia descobrir a razão para isso. Em uma situação normal, na qual a qualidade pode ser assegurada, as famílias procuram a escola pública para matricular seus filhos. Aqui, elas fogem da escola pública o mais rápido possível.

Agora, ao menos 40 escolas estaduais estão ocupadas por alunos e professores. Eles são contrários à "reformulação" imposta pelo governo, que prevê a mudança de 311 mil alunos de escolas, a tal "entrega" de escolas, que certamente levará ao aumento do número de alunos por sala. Como de praxe, a resposta padrão do governo consiste em mandar sua polícia espancar professores e jogar spray de pimenta em alunos. Quem quiser detalhes brutais, procure informações sobre a ocupação da escola estadual José Lins do Rego, por exemplo.

No entanto, essas pessoas protestam, entre outras coisas, por não aceitarem mais esse padrão de governo que consiste em impor decisões opacas resultantes da arrogância de tecnocratas de gabinete, como se essa mesma racionalidade tecnocrata não fosse, na verdade, a responsável maior pelos descalabros. Não ocorreu consulta e debate algum com professores e alunos sobre decisões que afetarão diretamente suas vidas. Os mesmos professores e alunos que conhecem a realidade bruta das escolas estaduais melhor do que qualquer consultor em educação pago a peso de ouro. Como sempre, aqueles que mais conhecem a realidade, aqueles dotados de uma inteligência prática resultante do contato concreto e cotidiano com os problemas são ignorados e tratados como cães quando protestam.

Um verdadeiro governo começaria por mudar radicalmente esse padrão de decisões, ouvindo e permitindo que as pessoas realmente envolvidas no problema pudessem deliberar. Ele compreenderia que, em uma verdadeira democracia, o Estado não impõe, o Estado ouve. Mas ouvir nunca foi uma qualidade muito prezada no Tucanistão.

In: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2015/11/1708539-desgoverno-travestido-de-eficiencia.shtml

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A educação para a ética: sem a desculpa do "não fui só eu"

Precisamos parar para pensar no valor de nossas ações. Distinguir melhor o que é certo do que é errado. E nos esforçar para conseguir agir de acordo com esse entendimento. Falo de ética.
São precárias as possibilidades do nosso tempo, já disse o advogado e poeta Paulo de Tarso. E, no cenário profundamente antiético, um disparate tem chamado a atenção. Para aquele momento em que, descoberto em roubalheiras, não dá mais para negar o óbvio, o submundo da política nacional tem utilizado uma péssima desculpa. Para abrandar a pena, quem sabe, se livrar dela, com cara coitado, inocente injustiçado, diz por aí, para quem quiser ouvir: "...mas não fui só eu".
O argumento não é novo. Ouvimos de crianças em formação. Na escola onde estudei, a resposta, por si só, sempre mereceu a censura não raro maior do que a falta praticada. A novidade é o uso oficial, descarado, pela politicagem.
A desculpa esfarrapada não vale para o Direito. De acordo com Código Penal, não ter sido o único a agir errado, não exclui a ilicitude do fato, como o "estado de necessidade" ou a "legítima defesa". Não retira seu caráter censurável, como acontece quando uma criança, incapaz de entender que o que fez é errado, "furta" um brinquedo do coleguinha (o Juiz não vai mandar prendê-la por isso!). Também não é algo que atenue a punição, como o é um "motivo de relevante valor social ou moral".
Roubar e falar, depois, que "não fui só eu" é sem-vergonhice, safadeza mesmo. Mais um sintoma muito sério do estado terminal ético que estamos vivendo.
Revela que o problema maior não é ser corrupto, sacanear os outros, desviar dinheiro público, embolsando verbas destinadas à saúde, educação, moradia, etc. O que provoca profunda indignação é se foder sozinho. Isso, sim, é muito injusto.
A prática cotidiana de desvios, dos pequenos aos graúdos – o que está às mãos, quando ninguém está olhando – se tornou nosso testemunho de Brasil. Não há dúvida, não foi o governo petralha que inventou a corrupção. A história mostra que coxinhas e militares ditadores são igualmente competentes nesse ofício. Um aprende com o outro. No fim, nos tornamos lenientes com a podridão. Não a descartamos quando nos convém. Somos, sim, contra o roubo que nos vitima. Somos contra os desvios praticados pelo PT ou pelo PSDB, a depender do lado que estamos. Mas, definitivamente, não somos contra a corrupção em si.
A pobreza ética atual, contudo, não significa que estamos incapacitados para uma experiência melhor. Não é um dado antropológico do brasileiro, feito uma segunda natureza irreversível.
O que nos faltam são boas lições de ética, o debate e aprendizado profundo sobre o que isso quer dizer. Se o mundo adulto está quase perdido, foquemos – os que não se perderam ainda – na geração que vem. A formação ética, aliás, constitui elemento central da educação básica, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais.
A ética não é um catálogo abstrato de bons comportamentos, aprendido numa aula de "educação moral e cívica" e, na prática, ignorado sistematicamente. Não se trata, também, de um conjunto de regras que cumprimos, sem saber muito bem o porquê, só porque Deus, o pai, o professor ou o líder espiritual ou político mandou. Ética tem a ver com deveres que cumprimos porque, para nós, isso é o certo, é o justo, ainda que o mundo insista em descumpri-los. São deveres que fazem parte de nós.
Isso é a autonomia, que define a vida democrática: a autodeterminação por normas que nos demos, que aprendemos, criticamos, melhoramos e concordamos. Por isso, seguimos, independentemente de que (e quem) estejam nos olhando. É a consciência do andar "direito", livre e responsável. Nos alerta, permanentemente, que a falta de respeito, a corrupção alheia não justifica que andemos errado também.

GUILHERME PEREZ CABRAL

Guilherme Perez Cabral é advogado especialista em direito educacional, doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito.

sábado, 7 de março de 2015

Nós e a civilização

Embora desejado e comemorado por pais e familiares, o nascimento do bebê é revestido de um processo que afeta a todos, principalmente aquele que acaba de nascer. É dolorido e, diria, até mesmo traumático sair do útero materno e ter que enfrentar o mundo aqui fora. O ato de corte do cordão umbilical é para criança o primeiro momento mais doloroso de sua vida, a tal ponto que a primeira coisa que ela faz é chorar. Se antes a criança está ligada à mãe e não tinha que fazer nenhum esforço, agora é preciso começar a construir a sua identidade, a sua individualidade, enfim, o seu Eu. Ao nascer, o bebê ainda não é capaz de fazer a separação ou a distinção entre o Eu e o mundo exterior, algo que ele vai conseguindo realizar aos poucos, por meio de diversos estímulos. Ele começa percebendo que não consegue satisfazer sua vontade de mamar, por exemplo, sempre que deseja, pois essa satisfação não depende, agora, apenas dele. Podemos considerar esse momento, ou seja, a relação com o peito materno, algo que se acha fora dele e que somente por meio de uma ação – o grito, o choro, etc. – aparece, como o primeiro sinal de que a vida é uma permanente luta e busca de satisfação, que nem sempre conseguimos, gerando frustrações, dores e sofrimentos. Por outro lado, esse processo gera em nós, desde a tenra infância, a capacidade de distinguirmos e de isolarmos todas as fontes de desprazer, proporcionando reconhecimento e os primeiros passos de construção de nossa individualidade e, quiçá, de nossa liberdade. Todavia, essa liberdade que vai se ampliando com o crescimento, ao mesmo tempo deve sofrer restrições para o próprio bem da civilização e para que possamos viver em grupo, de forma a não ser confundida com a brutalidade e a arbitrariedade dos mais fortes sobre os mais fracos. Ou seja, todos os desejos dos indivíduos não podem prevalecer. Liberdade não é isso. Por exemplo, e de acordo com Freud, a civilização restringe a vida sexual do indivíduo, determinando que somente o sexo oposto se torne objeto de seu amor sexual, embora isso esteja mudando bastante hoje. À civilização não agrada a ideia do sexo apenas como fonte de prazer, mas sim como modo de reprodução, como quer a ética cristã. Assim, para o homem civilizado, o sexo deixa de ser fonte de sensações felizes, reduzindo sensivelmente seu papel na busca pela felicidade. Dessa forma, a civilização faz o possível para unir os membros da comunidade por meio da amizade, criando laços de identificação e fortalecendo vínculos. Para isso, é inevitável que a vida sexual seja reprimida e que a libido seja direcionada para um amor fraternal. Ao lado dos vínculos amorosos e fraternais que surgem entre os indivíduos, fortalecidos pela sociedade, há também o instinto agressivo, de destruição e hostilidade de um contra todos, o instinto de morte. Desse modo, para Freud, a evolução cultural apresenta a luta entre o instinto de vida e o instinto de morte, embate que corresponde ao conteúdo essencial da vida humana. Portanto, desde o nascimento a tarefa que nos cabe é prepararmo- nos para conviver no seio da civilização, o que pode gerar situações de mal estar e de insatisfação. Talvez tudo isso é o que dá sentido às nossas vidas. 


Também em: http://www.jornaldamanhamarilia.com.br/noticia/26538/Nos-e-a-civilizacao/