Marcelo Rubens Paiva
Estado de São Paulo -
16 Julho 2016, p. C10.
A escola sem um professor de história de esquerda é como uma escola sem
pátio, sem recreio, sem livros, sem lanchonete, sem ideias. É como um professor
de educação física sem uma quadra de esportes, ou uma quadra sem redes, ou
crianças sem bola.
O professor de história tem que ser de esquerda. E barbudo. Tem que
contestar os regimes, o sistema, sugerir o novo, o diferente. Tem que expor
injustiças sociais, procurar a indignação dos seus alunos, extrair a bondade
humana, o altruísmo.
Como abordar o absolutismo, a escravidão, o colonialismo, a Revolução
Industrial, os levantes operários do começo do século passado, Hitler e
Mussolini, as grandes guerras, a guerra fria, o liberalismo econômico, sem uma
visão de esquerda?
A minha do colegial era a Zilda, inesquecível, que dava textos de Marx e
Weber, do mundo segmentado do trabalho. Ela era sarcástica com a disparidade
econômica e a concentração de renda do Brasil. Das quais nossas famílias, da
elite paulistana, eram produtoras.
Em seguida, veio o professor Beno (Benauro). Foi preso e torturado pelo
DOI-Codi, na leva de repressão ao PCB de 1975, que matou Herzog e Manoel Fiel
Filho. Benauro era do Partidão, como nosso professor Faro (José Salvador),
também preso no colégio. Eu tinha 16 anos quando os vimos pelas janelas da
escola, escoltados por agentes.
Outro professor, Luiz Roncari, de português, também fora preso. Não sei
se era do PCB. Tinha um tique nos olhos. O chamávamos de Luiz Pisca-Pisca.
Diziam que era sequela da tortura. Acho que era apenas um tique nervoso. Dava
aulas sentado em cima da mesa. Um ato revolucionário.
Era muito bom ter professores ativistas e revolucionários me educando.
Era libertador.
Não tem como fugir. O professor legal é o de esquerda, como o de
biologia precisa ser divertido, darwinista e doidão, para manter sua turma
ligada e ajudar a traçar um organograma genético da nossa família. A base do
seu pensamento tem de ser a teoria da evolução. Ou vai dizer que Adão e Eva nos
fizeram?
O de química precisa encontrar referências nos elementos que temos em
casa, provar que nossa cozinha é a extensão do seu laboratório, sugerir fazer
dos temperos, experiências.
O professor de física precisa explicar Newton e Einstein, o chuveiro
elétrico e a teoria da relatividade e gravitacional, calcular nossas viagens de
carro, trem e foguete, mostrar a insignificância humana diante do colossal
universo, mostrar imagens do Hubble, buracos negros, supernovas, a relação
energia e massa, o tempo curvo.
Nosso professor de física tem que ser fã de Jornada nas Estrelas.
Precisa indicar como autores obrigatório Arthur Clarke, Philip Dick, George
Orwell. E dar os primeiros axiomas da mecânica quântica.
O professor de filosofia precisa ensinar Platão, Sócrates e Aristóteles,
ao estilo socrático, caminhando até o pátio, instalando-se debaixo de uma
árvore, sem deixar de passar pela poesia de Heráclito, a teoria de tudo de
Parmênides, a dialética de Zenão. Pula para Hegel e Kant, atravessa o niilismo
de Nietzsche e chega na vida sem sentido dos existencialistas. Deixa Marx e
Engels para o professor de história barbudo, de sandália, desleixado e
apaixonante.
O professor de português precisa ser um poeta delirante, louco, que
declama em grego e latim, Rimbaud e Joyce, Shakespeare e Cummings, que procura
transmitir a emoção das palavras, o jogo do inconsciente com a leitura, a busca
pela razão de ser, os conflitos humanos, que fala de alegria e dor, de morte e
prazer, de beleza e sombra, de invenção fingimento.
O de geografia precisa falar de rios, penínsulas, lagos, mares, oceanos,
polos, degelo, picos, trópicos, aquecimento, Equador, florestas, chuvas,
tornados, furacões, terremotos, vulcões, ilhas, continentes, mas também de
terras indígenas, garimpo ilegal, posseiros, imigração, geopolítica, fronteiras
desenhadas pelos colonialistas, diferenças entre xiitas e sunitas, mostrar
rotas de transação de mercadorias e comerciais, guerra pelo ouro, pelo
diamante, pelo petróleo, seca, fome, campos férteis, civilização.
A missão deles é criar reflexões, comparações, provar contradições.
Provocar. Espalhar as cartas de diferentes naipes ideológicos. Buscar pontos de
vista.
O paradoxo do movimento Escola Sem Partido está na justificativa e seu
programa: “Diante dessa realidade – conhecida por experiência direta de todos
os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos –, entendemos
que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da
doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos
pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas
próprias convicções”.
Mas como nasceriam as convicções dos pais que se criariam num mundo de
escolas sem ideologia? E que doutrina defenderiam gerações futuras?
A escola não cria o filho, dá instrumentos. O papel dela é mostrar os
pensamentos discordantes que existem entre nós. O argumento de escola sem
ideologia é uma anomalia de Estado Nação.
Uma escola precisa acompanhar os avanços teóricos mundiais, o futuro,
melhorar, o que deve ser reformulado. Um professor conservador proporia manter
as coisas como estão. Não sairíamos nunca, então, das cavernas.
Vamos ao debate.
ResponderExcluir