sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Medicalização: remédio ou veneno?





Tornou-se uma prática predominante na sociedade atual e nas escolas o uso de remédios para que as pessoas se mantenham saudáveis e curadas. Há uma naturalização do uso de medicamento no cotidiano das pessoas. Você que está lendo esse texto agora é bem provável que haja a seu lado ou em sua casa, na sua bolsa ou no seu bolso, na gaveta de seu local de trabalho, etc., algum tipo de remédio, nem que seja para um simples dor de cabeça.
     Afora a indústria bélica, ou seja, de armas, a indústria de medicamentos é a que tem mais crescido e investido, faturando bilhões de dinheiros. Qualquer problema diagnosticado é motivo para emitir uma receita. É muito difícil você sair de uma consulta médica sem ter uma em mãos. Há até o absurdo dos médicos ganharem prêmios, brindes e viagens por receitarem o maior número desse ou daquele medicamento, favorecendo esse ou aquele laboratório. Por exemplo, em cinco anos, a venda de antidepressivos no Brasil subiu 48%. Segundo especialistas, o aumento nas vendas desse tipo de medicamento se deve à prescrição exagerada da "pílula da felicidade", tanto por médicos de outras áreas quanto para pacientes sem depressão.
     Esse é o diagnóstico que também tem alarmado os pesquisadores e educadores. Nas escolas, supostos problemas de comportamento ou de aprendizagem são tratados como uma doença que deve ser curada por meio da medicina somente. Nos últimos anos tem crescido assustadoramente o número de crianças que tem sido diagnosticadas e tratadas com remédios nas escolas. Segundo dados dos dados do IDUM, isto é, o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, em 2.000 foram vendidas 71.000 caixas de Ritalina ou metilfenidato, sendo que em 2010 esse número subiu para 2.000.000 de caixas vendidas. Todo esse processo é chamado de medicalização da sociedade e da educação.
De maneira geral, a medicalização é um mecanismo e uma ação que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes ordens são apresentados como ‘doenças’, ‘transtornos’, ‘distúrbios’ que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais e afetivas que afligem a vida das pessoas. Segundo manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (www.medicalizacao.com.br), questões coletivas são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Nesse processo, que gera sofrimento psíquico, a pessoa e sua família são responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais são eximidos de suas responsabilidades.
Uma vez classificadas como “doentes”, as pessoas tornam-se “pacientes” e consequentemente “consumidoras” de tratamentos, terapias e medicamentos, que transformam o seu próprio corpo no alvo dos problemas que, na lógica medicalizante, deverão ser sanados individualmente. Muitas vezes, famílias, profissionais, autoridades, governantes e formuladores de políticas eximem-se de sua responsabilidade quanto às questões sociais: as pessoas é que têm “problemas”, são “disfuncionais”, “não se adaptam”, são “doentes” e são, até mesmo, judicializadas.
A aprendizagem e os modos de ser e agir – campos de grande complexidade e diversidade – têm sido alvos preferenciais da medicalização. Cabe destacar que, historicamente, é a partir de insatisfações e questionamentos que se constituem possibilidades de mudança nas formas de ordenação social e de superação de preconceitos e desigualdades.
O estigma da “doença” faz uma segunda exclusão dos já excluídos – social, afetiva, educacionalmente – protegida por discursos de inclusão.
A medicalização tem assim cumprido o papel de controlar e submeter pessoas, abafando questionamentos e desconfortos; cumpre, inclusive, o papel ainda mais perverso de ocultar violências físicas e psicológicas, transformando essas pessoas em “portadores de distúrbios de comportamento e de aprendizagem”.
Enfim, a medicalização, com o discurso da cura e do cuidado, não passaria de um processo de envenenamento. No grego a palavra phármakon (donde farmácia) tem esses dois sentido: remédio e veneno. Talvez seja isso!

Alonso Bezerra de Carvalho é professor da Unesp. E-mail: alonsoprofessor@yahoo.com.br






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