Tornou-se uma
prática predominante na sociedade atual e nas escolas o uso de remédios para
que as pessoas se mantenham saudáveis e curadas. Há uma naturalização do uso de
medicamento no cotidiano das pessoas. Você que está lendo esse texto agora é
bem provável que haja a seu lado ou em sua casa, na sua bolsa ou no seu bolso,
na gaveta de seu local de trabalho, etc., algum tipo de remédio, nem que seja
para um simples dor de cabeça.
Afora a indústria bélica, ou seja, de
armas, a indústria de medicamentos é a que tem mais crescido e investido,
faturando bilhões de dinheiros. Qualquer problema diagnosticado é motivo para
emitir uma receita. É muito difícil você sair de uma consulta médica sem ter
uma em mãos. Há até o absurdo dos médicos ganharem prêmios, brindes e viagens por
receitarem o maior número desse ou daquele medicamento, favorecendo esse ou
aquele laboratório. Por exemplo, em cinco anos, a venda de antidepressivos no
Brasil subiu 48%. Segundo especialistas, o aumento nas vendas desse tipo de
medicamento se deve à prescrição exagerada da "pílula da felicidade",
tanto por médicos de outras áreas quanto para pacientes sem depressão.
Esse é o diagnóstico que também tem
alarmado os pesquisadores e educadores. Nas escolas, supostos problemas de
comportamento ou de aprendizagem são tratados como uma doença que deve ser
curada por meio da medicina somente. Nos últimos anos tem crescido
assustadoramente o número de crianças que tem sido diagnosticadas e tratadas
com remédios nas escolas. Segundo dados dos dados do IDUM, isto é, o Instituto
Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, em 2.000 foram vendidas
71.000 caixas de Ritalina ou metilfenidato, sendo que em 2010 esse número subiu
para 2.000.000 de caixas vendidas. Todo esse processo é chamado de
medicalização da sociedade e da educação.
De maneira geral, a
medicalização é um mecanismo e uma ação que transforma, artificialmente,
questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes ordens são
apresentados como ‘doenças’, ‘transtornos’, ‘distúrbios’ que escamoteiam as
grandes questões políticas, sociais, culturais e afetivas que afligem a vida
das pessoas. Segundo manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade
(www.medicalizacao.com.br), questões coletivas são tomadas como individuais;
problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Nesse processo, que gera
sofrimento psíquico, a pessoa e sua família são responsabilizadas pelos
problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais são eximidos de suas
responsabilidades.
Uma vez classificadas como
“doentes”, as pessoas tornam-se “pacientes” e consequentemente “consumidoras”
de tratamentos, terapias e medicamentos, que transformam o seu próprio corpo no
alvo dos problemas que, na lógica medicalizante, deverão ser sanados
individualmente. Muitas vezes, famílias, profissionais, autoridades,
governantes e formuladores de políticas eximem-se de sua responsabilidade
quanto às questões sociais: as pessoas é que têm “problemas”, são
“disfuncionais”, “não se adaptam”, são “doentes” e são, até mesmo,
judicializadas.
A aprendizagem e os modos de
ser e agir – campos de grande complexidade e diversidade – têm sido alvos
preferenciais da medicalização. Cabe destacar que, historicamente, é a partir
de insatisfações e questionamentos que se constituem possibilidades de mudança
nas formas de ordenação social e de superação de preconceitos e desigualdades.
O estigma da “doença” faz uma
segunda exclusão dos já excluídos – social, afetiva, educacionalmente –
protegida por discursos de inclusão.
A medicalização tem assim
cumprido o papel de controlar e submeter pessoas, abafando questionamentos e
desconfortos; cumpre, inclusive, o papel ainda mais perverso de ocultar violências
físicas e psicológicas, transformando essas pessoas em “portadores de
distúrbios de comportamento e de aprendizagem”.
Enfim, a medicalização, com o
discurso da cura e do cuidado, não passaria de um processo de envenenamento. No
grego a palavra phármakon (donde
farmácia) tem esses dois sentido: remédio e veneno. Talvez seja isso!
Alonso Bezerra de Carvalho é professor da Unesp. E-mail:
alonsoprofessor@yahoo.com.br
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